quarta-feira, 25 de novembro de 2009


A amizade (por Rubem Alves)

Lembrei-me dele e senti saudades... Tanto tempo que a gente não se vê! Dei-me conta, com uma intensidade incomum, da coisa rara que é a amizade. E, no entanto, é a coisa mais alegre que a vida nos dá. A beleza da poesia, da música, da natureza, as delícias da boa comida e da bebida perdem o gosto e ficam meio tristes quando não temos um amigo com quem compartilhá-las. Acho mesmo que tudo o que fazemos na vida pode se resumir nisto: a busca de um amigo, uma luta contra a solidão...

Lembrei-me de um trecho de Jean-Christophe, que li quando era jovem, e do qual nunca me esqueci. Romain Rolland descreve a primeira experiência com a amizade do seu herói adolescente. Já conhecera muitas pessoas nos curtos anos de sua vida. Mas o que experimentava naquele momento era diferente de tudo que já sentira antes. O encontro acontecera de repente, mas era como se já tivessem sido amigos a vida inteira.
A experiência da amizade parece ter suas raízes fora do tempo, na eternidade. Um amigo é alguém com quem estivemos desde sempre. Pela primeira vez estando com alguém, não sentia necessidade de falar. Bastava a alegria de estarem juntos, um ao lado do outro.
"Christophe voltou sozinho dentro da noite. Seu coração cantava 'Tenho um amigo, tenho um amigo!' Nada via. Nada ouvia. Não pensava em mais nada. Estava morto de sono e adormeceu assim que se deitou. Mas durante a noite fora acordado duas ou três vezes, como que por uma idéia fixa. Repetia para si mesmo: 'Tenho um amigo', e tornava a adormecer."
Jean-Christophe compreendera a essência da amizade. Amiga é aquela pessoa em cuja companhia não é preciso falar. Você tem aqui um teste para saber quantos amigos você tem. Se o silêncio entre vocês dois lhe causa ansiedade, se quando o assunto foge você se põe a procurar palavras para encher o vazio e manter a conversa animada, então a pessoa com quem você está não é sua amiga. Porque um amigo é alguém cuja presença procuramos não por causa daquilo que se vai fazer juntos, seja bater papo, comer, jogar ou transar. Até que tudo isso pode acontecer. Mas a diferença está em que, quando a pessoa não é amiga, terminando o alegre e animado programa, vêm o silêncio e o vazio - que são insuportáveis. Nesse momento o outro se transforma num incômodo que entulha o espaço e cuja despedida se espera com ansiedade.
Com o amigo é diferente. Não é preciso falar. Basta a alegria de estarem juntos, um ao lado do outro. Amigo é alguém cuja simples presença traz alegria, independentemente do que se faça ou diga. A amizade anda por caminhos que não passam pelos programas.
Uma estória oriental conta de uma árvore solitária que se via no alto da montanha. Não tinha sido sempre assim. Em tempos passados a montanha estivera coberta de árvores maravilhosas, altas e esguias, que os lenhadores cortaram e venderam. Mas aquela árvore era torta, não podia será transformada em tábuas. Inútil para os seus propósitos, os lenhadores a deixaram lá. Depois vieram os caçadores das essências em busca de madeiras perfumadas. Mas a árvore torta, por não ter cheiro algum, foi desprezada e lá ficou. Por ser inútil, sobreviveu. Hoje ela está sozinha na montanha. Os viajantes se assentam sob a sua sombra e descansam.
Um amigo é como aquela árvore. Vive de sua inutilidade. Pode até ser útil eventualmente, mas não é isso que o torna amigo. Sua inútil e fiel presença silenciosa torna a nossa solidão uma experiência de comunhão. Diante do amigo, sabemos que não estamos sós. E alegria maior não pode existir.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Isca de fígado

Nada contra shitake, sushi, sashimi, todo esse tremelique que chia modernidade na cozinha e encanta jurados do Prêmio Rio Show de Gastronomia — mas, senhores, por mais finos e antenados com as últimas notícias que todos sejam, por mais experimentados que seus paladares tenham sido com a comida em movimento do espanhol Ferran Adrià, ou da cozinha molecular do inglês Heston Blumenthal, qual o problema com a santa rabada, a dobradinha, o fígado acebolado, o frango com quiabo e o filé com dois ovos, essas comidas que formaram a argamassa que mantém em pé a raça carioca e agora desaparecem das mesas elogiadas?

Eu vi a lista dos premiados em O GLOBO e, de entrada, achei assim meio pêra assada ao gorgonzola. Faltou uma sopa de músculo para molhar o pão. Será que não tem um tira gosto no capricho, um bolinho de aipim com carne seca desfiada, para começar os trabalhos?

Quem sou eu para reclamar de mais uma azeitona de ouro no currículo do bacalhau com natas do Antiquarius. Faço gosto. Ai de mim deixar de aplaudir nova comenda no peito do chef Salvatore Loi, do Gero, craque até na bolinha de manteiga do couvert. Feliz a cidade capaz de se banquetear com essa endívia holandesa em cima da mesa — mas, em meio a tanta bruschetta e supremo de frango orgânico ao ragout de favas e estragão, será que ninguém lamberá mais os beiços com o mocotó do Penafiel?

Será que todos esses senhores, mestres no uso do guardanapo antes de se levar o copo de vinho à boca, gourmets capazes de reconhecerem, sem perguntar ao garçom, todos os ingredientes que diferenciam uma salada lyonaise de uma chavignol — será que eles não passearam o apetite uma vez sequer pela capa de costela com feijão manteiga do Escondidinho no Beco dos Barbeiros?

A cidade, já se sabia, estava socialmente partida e agora é a vez de anunciar, como fez o Prêmio Rio Show de Gastronomia em suas entrelinhas, a mesa partida. A galinha caipira já era. O bife rolé com purê nem pensar. A língua com arroz está em falta faz tempo. Nenhum restaurante do Centro, celeiro fundamental de uma certa cozinha carioca, uma leitura popular do que trouxeram os portugueses e foi filtrado por índios e escravos, nada do que nos tem sido típico pasto e prazer consagrou-se no Prêmio.

Onde estão as estrelinhas de mérito glutão, senhoras autoridades tão compenetradas no uso do sorbet, que deveriam estar decorando o cabrito, alho frito e arroz com brócolis do Nova Capela?

Que cidade é essa que se faz blasé, pede um risoto de cevadinha com linguado a grenobloise, e esquece de se ajoelhar diante da lentilha garni do Bar Brasil na Mem de Sá?

Eu tenho como esporte urbano pescar restaurantes pelo Centro, caçar o que eles nos servem de História ao redor de seus pratos fartos e palitar os dentes com seus cardápios geniais. É aventura sem bússola. Os farejadores do Michelin, do Gault Millau e do Zagat não passaram por aqui com suas estrelas. Bato na porta e entro. Meu guia é o paladar cultivado na infância — e aqui abro travessão para agradecer a democracia lusitana que me cultivou ao azeite das sardinhas, ao bife de sangue das galinhas, ao alho nos miolos, ao charivari da morcela, ao sarrabulho étnico, ao cassoulet com paio, tudo regado ao vinho Dão. Quem passa por essa Coimbra do gosto, saúda o foie gras do Troigros, as trufas brancas do Gero. Sabe que são todos aparentados ao sabor exuberante do leitão à pururuca que enchia minha mesa infantil.

Ninguém pode fazer nada se em casa as crianças estão sendo educadas a miojo com ketchup. Nas ruas uma dessas autoridades dos arquivos culturais devia perceber que não só o que avista o olho é patrimônio. O paladar é memória também — e, como se viu pela opinião dos jurados do Prêmio Rio Show de Gastronomia, ninguém se lembra mais da peixada do Sentaí, das empadas da Lisboeta, do ossobuco do Senadinho e do pernil molhado que vem no sanduíche do Paladino.

No início do mês fecharam o Ficha, o alemãozinho da Teófilo Ottoni, e retiraram das nossas papilas gustativas o gosto forte do seu labskaus, um bolo de carne com ovos que alimentou a imaginação de várias gerações de cariocas. Será que ninguém percebe que é fato tão grave quanto roubarem um azulejo do Portinari no Palácio Capanema? Tão escandaloso quanto derrubarem um fícus do Glaziou no Campo de Santana?

Eu tenho fome de História e gostaria de continuar caçando meus restaurantes populares, de comida saborosa e barata pelas ruas do Centro, mas sinto que é esporte cada vez mais exótico e difícil de ser praticado. Os escritórios querem que seus funcionários voltem logo para o computador — e promovem o jogo rápido da comida a quilo. A bandidagem nas calçadas e a sujeira das ruas assustam — e deixam na Zona Sul os experts do Rio Show, protegidos ao doce do profiteroles farcies de glacê vanille et sauce chocolat do Garcia.

Se a memória afetiva na semana passada preservou para sempre as figueiras da Santa Luzia, urge que se crie um carimbo de memória gastronômica e conserve-se até a passagem do último furacão o que sempre nos foi gosto e língua com batata, civilização e miúdos de frango, carioquice e isca de fígado, patrimônio e bolinho de bacalhau.

O resto é a invasão bárbara do tomate seco e rúcula.



Coluna Joaquim Ferreira dos Santos em O GLOBO.